sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

A ressaca de Natal

Dia 26 de Dezembro. 8:30.
Mateus acorda. Não sabe aonde está. Dói-lhe a cabeça. Olha em volta. O espaço não lhe é familiar. Está numa casa de banho. Dormiu no bidé. Levanta-se e olha-se ao espelho. Tem a marca da torneira gravada na testa. Ainda tem a mesma roupa que vestiu para a ceia de Natal em casa dos avós. Procura o telemóvel. Ouve cães as latir e gatos a miar. Os sons vêm de longe mas parecem perfurar-lhe o cérebro. Entra numa sala. Parece vinda de um filme de terror. Uma árvore de Natal tombada, sangue por todo o lado e duas pessoas. E o telemóvel. 383 comentários no Facebook. Só nos primeiros quinze chamam-lhe trinta e três vezes "filho da puta". Pousa o telemóvel porque as pessoas começam a mexer-se. A que estava deitada por cima da árvore de Natal está nua e tem duas bolas da árvore como brincos. É o seu primo Tomé. A outra tem as calças ensopadas em sangue e quando vira a cara, vê-se um esgar de dor. É o seu tio Zé.

Ao Tomé dói-lhe as costas. E não é de ter dormido em cima da árvore. Tem uma tatuagem ainda fresca por cima do cóccix. O desenho de uma rabanada e uma frase numa outra língua que ninguém percebe. Zé começa imediatamente a gritar. Abre o fecho das calças e só vê sangue. Grita que lhe cortaram a "gaita". Mas a "gaita" ainda lá estava. Faltava-lhe apenas o prepúcio.

- Que aconteceu? Como é que viemos aqui parar? - pergunta Mateus.
- Acordaram! - diz um senhor asiático acabados de entrar na sala. - Bem-vindos ao talho do restaurante "Ho Chi Min". Os senhores preferem ser Chau Min de Galinha ou de Porco?
- Chau quê!? Quem é o senhor? - Tomé está ainda mais aturdido.
- Sou o vosso dono. Chef Lee.
- Dono? - pergunta Tomé, ainda a gemer.
- Sim, a vossa família vendeu-vos a mim depois do Natal. Para grelhados. E vocês vieram de livre vontade. Não se lembram do que aconteceu?
Os três entreolharam-se. Não estavam a perceber nada. Chef Lee começou a explicar.

"Aqui o nosso amigo nudista decidiu começar a beber às 9 da manhã da véspera de Natal. Infelizmente, escolheu a tasca onde todos conheciam a sua avó Gina. E não pelas melhores razões. O Natal é a época de nostalgia e de união. Todos os presentes começaram a contar histórias dos bons velhos tempos em que se uniam à avó Gina. Entre eles, ela não era conhecida como avó Gina - era conhecida como a Mãe Natal, porque todos os dias oferecia anal. Isto abalou os sentidos ao Tomé. Isso o bagaço ao pequeno-almoço. Desvairado, saiu da tasca e procurou outro sítio para beber. Entrou em mais alguns, mas a dor das revelações acerca da avó Gina não diminuía. Já em inconsciência, entrou num estúdio de tatuagens e pediu para lhe fazerem uma em homenagem à avó Gina. Uma rabanada, a especialidade natalícia da senhora; tinha que estar na linha de visão dos homens que a possuíram, daí estar acima do cóccix; e com a frase, em árabe, "Eu gosto é de enrabanadas. Avó Gina". Chegou a casa da avó Gina em tronco nu, já com o jantar a decorrer, mostrou a tatuagem, e começou a cantar:
♫ É Natal, é Natal
   e a avó Gina já aviou
   toda a gente com anal. ♫"

"Já o 'prepúcios' tentou amenizar o ambiente com uma dramatização do presépio. Enquanto o nudista cantava, ele emborcava shots de uma garrafa de Porto que era para oferecer ao avô. Estava nervoso. A avó Gina tinha sido a sua primeira. Nada foi revelado, mas era tarde de mais. A cair de bêbedo, propôs a participação da família numa representação real do nascimento de Jesus. Os papéis foram atribuídos à família por lógica: o afilhado que tinha reprovado duas vezes no 2º ano era o burro; a prima de Setúbal era a vaca, bastava ver as fotos do Instagram; o irmão que trabalhava no Intendente era José, também ele não se importava de casar com mulheres que engravidavam doutros; a avó Gina era Maria porque, segundo o nudista, «no cu não conta»; o 'prepúcios' era o menino Jesus pois, também ele, gostava de se relacionar com meninos. A dramatização decorreu no quarto dos avós. Estava tudo a correr bem até que o menino Jesus decidiu mostrar o que aconteceu a seguir à visita dos 3 reis magos. Pediu à tia Jorgina para trazer a tábua dos queijos e a faca de trinchar o peru. No delírio do álcool, anunciou que Jesus era judeu e, como qualquer judeu, tinha que retirar a pele adicional do pénis. Colocou o seu entre o brie e a mozarela e cortou o prepúcio com a faca do peru. Era gritos e sangue por todo o lado."

"Tudo culminou aqui com o homem mais odiado das redes sociais. Para reuperar das afrontas destes dois, também ele bebeu mais do que a sua conta. Curioso é que conseguiu animar a restante família com alguns dizeres espirituosos contra o Governo. Eis se não quando começa o discurso do Primeiro-Ministro na televisão. Aqui o artista que já não via nem ouvia direito, decidiu tirar uma selfie a dar um linguado a Pedro Passos Coelho. Postou a foto no Facebook, Twitter, Instagram e Match.com, com a legenda: «Eu amo você.» Ninguém aguentava mais. Pedro Passos Coelho, beijos quentes e Nilton era o ultraje que nenhuma família conseguiria ultrapassar. Telefonaram para o canil e eu fui buscar-vos. Portanto, volto a perguntar:
- Os senhores preferem ser Chau Min de Galinha ou de Porco?"

segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

Contos de Natal por Realizadores Famosos


- David Lynch

Era noite de Natal. O Pai Natal distribuía presentes por todas as casas.
Apareceu um comboio: alfa pendular. Virou-se para a garrafa de azeite e perguntou:
- Então, isto é que é Marte?
Fim

- Quentin Tarantino

O Pai Natal desceu a chaminé. António, mais conhecido pelo nome de código Matracas, estava à sua espera. Os olhares dos dois cruzaram-se ao som de Al Green.
- António? Ou devo dizer: Matracas? Portaste-te muito mal este ano, não foi? E já sabes o que diz Samuel acerca disso. Capítulo 15, versículo 18: "Enviou-te o Senhor a este caminho e disse: «Vai e destrói totalmente estes pecadores [...] até exterminá-los." Toma a tua prenda.
Antes de cair um pingo de suor da fronte de Matracas, 78 balas perfuraram-lhe o abdómen, espichando sangue por todo o lado: presépio, prendas e árvore de Natal. O Pai Natal sai com ar de dever cumprido. Porém, ainda há vida em Matracas. Antes de entrar em coma, apenas um pensamento vai na sua cabeça:
- Vingança! Tenho que matar o Pai Natal.
Fim

- Michael Moore

Flint, Michigan. Dia 24 de Dezembro. As famílias americanas estão reunidas à mesa para celebrar o Natal. Perto da meia-noite, o Pai Natal pousa o trenó num telhado. Vai descer a primeira chaminé. Não consegue. Está demasiado gordo porque as grandes empresas, que dominam os políticos de Washington, obrigam-no a alimentar-se daquilo que está a matar a América: fast-food.
Fim

- David Fincher

O Pai Natal desce a escura chaminé. O cheiro daquela fuligem é familiar e não muito distante na sua memória. Quando leva às mãos ao saco para retirar os presentes, não os encontra. Sem saber o que fazer, repara que os presentes estão já junto da árvore. Alguém quebrou as regras do "Clube de Natal":
1ª regra: Só o Pai Natal distribui presentes no Natal.
2ª regra: Só o Pai Natal distribui presentes no Natal.
Quem se teria adiantado? Os duendes ajudantes? Rudolfo? Valentim Loureiro?
Não era possível! Eles não existiam. Será que também ele não existia?
Fim

- George Lucas

 Há muito, muito tempo. Numa chaminé de uma galáxia distante, estava Pai Natal. Esta chaminé era a última do seu planeta. Lord Gore havia instituído por todo o seu império que as chaminés não eram energicamente eficientes. Mandou eliminá-las. Isso significava que a chaminé onde Pai Natal se encontrava era rebelde. E a última. Para Pai Natal manter o seu emprego teria que eliminar Lord Gore. E assim aconteceu. No auge do combate num bloco de gelo da Antártida, Lorde Gore confessa:
- Pai, eu sou o teu pai!
- Mas só há lugar para um Pai: eu!
- Sim, mas um pai também é filho. E tu és o meu.
- Então porquê eliminar as chaminés? São o trabalho do teu filho!
- Porque pensei que passasses a optar pelas portas. É mais seguro e eu não queria que te magoasses.
- Oh, papá!
Lord Gore desiquilibra-se com o degelo provocado pelo aquecimento global e desaparece nas profundezas do oceano. 
Fim

- Stanley Kubrick

O Pai Natal desce pela chaminé. Na sala, um aglomerado de nudistas, apenas de máscara veneziana, esperavam-no:
- Com que então, a tentar entrar clandestinamente neste grupo secreto? Qual é a palavra passe?
- Não sei!
- Pois então vai sofrer as consequências. Katerina, Matilde, Ivanenka! Sentem-se ao colo do gordo!
Fim

- Woody Allen

O Pai Natal desce pela chaminé. Alvy Singer estava sozinho a ler Kirkegaard.
- Oh, não estava à espera que visitasse um judeu ateu. Apesar de desprezar tudo o que representa em termos sociais, respeito a solidão e mascarar-se em idade adulta. Quando a Annie me deixou eu fiz o mesmo. Não descer pela chaminé das pessoas, é claro. Um judeu no Natal só era o melhor presente, se fosse à mesa de Himmler. Disfarcei-me de escaravelho, como na Metamorfose de Franz Kafka, e fui para o Central Park, para mostrar que a solidão também ocorre em espaços abertos. Isso e porque pagar renda no Upper East Side é mais difícil do que fazer o Roosevelt correr os 100 metros barreiras.
Fim