segunda-feira, 29 de julho de 2013

O escritor que se esqueceu de escrever VII

(continuação da continuação da continuação da continuação da continuação da continuação - parte 6 aqui)

  • Versos em Reverberação (2032), poesia interactiva
A decadência literária de Bruno é atestada pela segunda e última publicação na sua nova editora, uma vez que é despedido logo após a publicação deste livro. Se este livro tivesse saído no auge literário de Bruno poderíamos falar duma espécie de renascimento do surrealismo; como estávamos nos apeadeiros finais, observou-se uma forma de patologia psiquiátrica. O que o autor nos oferece é uma série de ecos, propondo ao leitor a adivinha da rima. Observe-se os seguintes exemplos:
...ração...ação...ção...ão...ãããooo _______________________________________
...abrão...brão...rão...ão...ããããoo  _______________________________________
...oder...der...der...er...eeeerrrrrr  _______________________________________
...uta...uta...uta...ta...ta...aaaaaaa _______________________________________
...avali...vali...vali...ali...liiiiiiiiiii  _______________________________________
...aneleiro...neleiro...leiro...eiiiiro _______________________________________
Chegava ao fim a produção literária de Bruno, sob a sua pena, sem glória.
Os louros viriam depois, em duas tranches: primeiro, com o seu livro de maior sucesso (que não era seu) e, segundo, com o maior prémio literário que um escritor pode almejar.
  • Vim das Gónadas do Meu Tio (2038), autobiografia não autorizada
Caído no olvido, Bruno deambula pelas ruas, onde passa a dormir. No Inverno de 2037, Nélson Baltasar reencontra Bruno no parque municipal, sem o reconhecer imediatamente. Reatam a amizade e Nélson alberga-o em sua casa, que tinha pouco espaço, onde passa a dormir com 26 chinchilas.
Desta vez, quem puxa o tema da literatura é Bruno e revela que nunca conseguiu parar de escrever. O único tema que lhe interessava era ele próprio. Nada externo a si o movia na escrita. E era a escrita que o mantinha vivo, quer no sentido, quer biologicamente. Bruno passou a escrever em folhas de árvores: mantinha o que queria recordar em folhas perenes; e alimentava-se de folhas caducas onde também escrevia, mas apenas o que queria comer - 'rolo de carne', 'tofu de doninha', 'gin de maracujá'.
Nélson pediu-lhe autorização para catalogar as folhas e tentar fazer delas um livro. Ficou espantado quando verificou que o que tinha em mãos tinha substrato e não era da resina; tinha substrato literário. Era o livro mais sincero e visceral de Bruno; e era a sua autobiografia.
A ideia de publicar não fazia parte do horizonte de Bruno; queria apenas escrever. E queria deixar de o fazer em folhas arrancadas e em folhas caídas. O seu objectivo era simples: escolher uma árvore e escrever a sua história nas suas folhas. E quem quisesse ler, teria que trepar uma árvore. Não mais haveria edições em papel, nem apresentações, nem entrevistas, nem nada. Apenas a sua história: espalhada nas folhas da árvore: perecível ao sabor do tempo.
Mas Nélson queria ajudar financeiramente Bruno. O facto de Bruno lhe andar a gratinar chinchilas também pesou. A única forma de o ajudar, uma vez que Nélson era parco em bens, era publicar a autobiografia de Bruno.
Assim aconteceu. E foi efectivamente o livro mais sincero e vísceral de Bruno.
Uma autobiografia que começa com as palavras de engate do pai para a mãe do autor, seguida da descrição pormenorizada da sua concepção. Ficamos a conhecer o gérmen da produção literária de Bruno, mas a novidade, o choque, adveio das relações entre os seus familiares.
Afinal quem Bruno conhecia como pai era somente seu tio-avô, enquanto o seu tio era o seu pai biológico; já a sua mãe era efectivamente sua mãe, mas acumulava com o grau de avó paterna; o seu primo mais velho era, na realidade, o seu filho mais novo; manteve uma relação extra-conjugal, ele que foi sempre solteiro, com a cadeira de baloiço que vivia em união de facto com o seu primo Samuel; a cadeira de rodinhas que se pensava ser fruto desse relacionamento mais não era do que filha de Bruno, revelação inédita.
A família padecia de Parentalatatite (badalhoquissis nojentis em latim), uma patologia que permite reconhecer familiares pelo cheiro, mas torna graus indescerníveis.
O livro conheceu enorme sucesso, tendo chegado à 72ª edição (sendo que as primeiras 60 foram de 3 exemplares cada uma) só em território nacional.
No decorrer deste sucesso Bruno esteve incontactável e invislumbrável. Consta-se que, com o dinheiro da autobiografia, Bruno terá comprado uma oficina de carpintaria onde passou a viver e juntamente com cerca de duas centenas de cadeiras abandonadas (com pernas a menos; mancas; cruzamentos de venguê com carvalho mal conseguido; etc.)
Bruno só voltou a ser visto uma única vez.
Seria última: para nós e para ele.

(continua para terminar, se o escritor não se esquecer de escrever)

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