quarta-feira, 12 de novembro de 2014

Da condição feminina e piqueniques


Após o término da temporada das refeições ao ar livre conclui-se:
 
Fazer piqueniques é trazer a casa para a rua, mas ter paredes mais bonitas.

Para ilustrar esta conclusão, leia-se o relato de D. Adosinda Henriques, acerca da preparação e realização do acto de piquenicar. Para ser lido em voz alta, numa voz estridente e arrastada (aquele arrastar de dores nas cruzes):

Adoro piquenicar!
Até parece blasfémia, que só se deve adorar a Deus.
Mas eu adoro. Pronto, está dito, está dito! Que seja esse o meu único pecado.
Gosto de tudo, sobretudo do descanso.
Levanto-me às 3 da manhã para sacudir as lonas das tendas, passar a ferro as toalhas de mesa e a roupa do meu homem, começo a tratar do cozido, a embalar o serviço de cozinha em papel de jornal, que o meu homem não gosta de comer em pratos de plástico, dou uma mangueirada na arca, por causa do cheiro, preparo o bolo de cenoura, meto o pão a fazer no forno a lenha, vou apanhar umas couves ao quintal para fazer o caldo verde... Nisto já devem ser umas 4, e eu para mim:
«Pára de mandriar, Adosinda, que isso é só para quando estiveres no piquenique!»
E lá continuo.
Boto três chouriças no caldo verde, outras três para assar mais logo, vou buscar a arca, já seca, e meto lá para dentro as cuvetes e as cervejas, volto ao quintal para apanhar umas pêras para a sobremesa, que ao meu homem nem lhe sabe a comida se não comer uma pêra bêbada no fim da refeição, aproveito para trazer as cadeiras e as mesas da garagem, ponho o óleo ao lume para os panados e para os rissóis e, nisto, já devem ser quase 5, e eu para mim:
«O que é que se passa contigo, Adosinda? Deu-te para malandra? Anda lá, faz-te à vida!»
Ouço dois peidos do meu homem vindos do quarto e sei que, vai não vai, está a levantar-se para tomar o pequeno-almoço. Começo a fazer o café, a cortar o pão e presunto e pôr a mesa. O cozido está quase pronto, o caldo verde já pode seguir para a porta com o tacho embrulhadinho com dois panos, aproveito para limpar e passar óleo nas cadeiras e nas mesas, meto o queijo, o presunto e o bagaço na ceira, e oiço o meu homem na cozinha a reclamar, que o café não está na chávena, e eu para mim:
«Estás a ver, Adosinda? Estás a ver o que dá ter a cabeça no ar?»
Corro para a cozinha, peço desculpa por ser assim estúpida, e volto aos meus afazeres. Começo a pôr tudo para dentro da carrinha: as duas tendas, uma para descansar, outra para a comida ficar à sombra, as quatro toalhas, as duas mesas, as seis cadeiras, o tacho do cozido e o tacho do caldo verde, a ceira com as chouriças, o presunto, o queijo e o bagaço, a arca com a cerveja, a cesta com o serviço de cozinha, os talheres e os copos, o tuperware com o bolo de cenoura, o prato com o pão, o saco com as pêras e, nisto, já são 6 da manhã, e eu para mim:
«Que grande gaita, Adosinda! A esta hora hás-de encontrar um belo sítio para o piquenique. Hás-de, hás-de! A esta hora já lá está a Gertrudes, a Madalena e a Amália, todas pimponas a ocupar as sombras todas.» 
Mas vamos à mesma, que já estava tudo combinado com a família.

(Continua aqui)

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