sexta-feira, 10 de maio de 2013

STATU-CIVITAFILIA - parte 1

Sempre me senti diferente.
Acontece que nasci como quase toda a gente: solteiro.
À medida que fui crescendo, vi que tinha que ganhar gostos, não só nos posts do Facebook, mas para a vida real: escola, trabalho e hobbies.
Havia também que eleger fetiches.
Experimentei: podolatria, mas era alérgico a queijo e aos laticínios em geral; frotteurismo, rapidamente abandonado pela aquisição de pé-de-atleta na glande; tricofilia, extinto em meados de 2005 com a massificação da cultura brazilian wax.
Na verdade ainda pensei experimentar outras parafilias, mas nunca as senti como minhas.
Tinha que criar o meu fetiche.
Foi então que me lembrei do STATU-CIVITAFILIA.
Isso mesmo: fetiche por estados civis.
Iniciei-me pelo estado que os meus pais me ofereceram à nascença, que eles também não tinham muitas posses.

1. SOLTEIRO, com dois momentos distintos:
a) solteiro narcisista: também conhecida por: "Os Gloriosos Tempos do Masturbador Compulsivo";
b) solteiro generoso: oferenda de inúmeras bebidas a outro sujeito solteiro, por norma gajas, possibilitando interacção sexual a dois ou a um, dependendo de graus de consciência.

Esta fase durou entre os 13 e os 19: estava desejoso de passar à fase seguinte. E correu tudo segundo os meus planos: queria casar duas vezes: uma por amor, outra por interesse.

2. CASADO (POR AMOR):
A Rosana era a mulher da minha vida: bonita, interessante, gostava das mesmas bandas, dos mesmos livros e tinha fetiche por homens unitesticulares: tínhamos tudo em comum.
Mas eu tinha um objectivo: divorciar-me.
Foi espectacular, nada fácil, mas espectacular.
A Rosana não estava nada à espera, até porque o nosso amor era do tamanho do mundo.
Eu disse: "Quero o divórcio." Ela disse que eu devia estar brincar, que nós brincávamos imenso, e virou-me costas.
Não sabia o que havia de fazer para que ela me levasse a sério. Foi então que optei por um acto em grande.
Aos domingos costumávamos almoçar em casa dos pais dela e, naquele dia de Páscoa, decidi chegar mais cedo. Quando a Rosana entrou, deparou-se com uma cena fabulosa: eu a esganar o pai enquanto lhe violava a mãe.
Ela lá me levou a sério e deu-me o divórcio, cumpria eu o primeiro dos dez anos de prisão.
Agradeci e disse-lhe que, lá por já não sermos marido e mulher, podíamos manter uma relação de amizade. Afinal, éramos ambos adultos.
A situação que me causou maior estranheza foi a dos pais da Rosana: nunca mais me dirigiram a palavra. E eu que costumava levar a velha ao mercado todos os Sábados.

(continua)

quinta-feira, 9 de maio de 2013

O escritor que se esqueceu de escrever IV

(continuação da continuação da continuação - parte 3 aqui)

  • Capadócia Vista do Subsolo (2018), literatura de viagens
Com receio que descubram o que contém nas páginas do livro anterior, Bruno aceita uma encomenda da revista Actual, suplemento do jornal Expresso, para escrever crónicas sobre o Peru, a potência emergente da América Latina, após a descoberta do poder curativo do cuspe de lamas.
Acompanhado do fotógrafo Manuel Araújo, depressa se apercebe que está a ver o Peru mas com a cabeça na Turquia. Decide escreve sobre a Turquia, desde o Peru. Um livro que começa em Arequipa, depressa se transfere para Diyarbakir. No tema mais quente, encontramos a refutação da teoria de Nuno Rogeiro acerca da condição curda, desde logo porque o comentador televisivo opina sentado e, como sublinha Bruno, só se pode ter ideias precisas sobre curdos quando se está de pé.
O livro conta com duas edições, uma de texto e outra ilustrada com fotografias, tendo sido a última totalmente devolvida pelos leitores, pois pensaram que o livro estaria danificado - a imagem de Machu Pichu estava lado a lado com um texto sobre Izmir, entre outros exemplos semelhantes.
O livro foi traduzido para turco, castelhano, quíchua e aimará, sendo um best-seller tanto na Turquia como no Peru. Nestes países sucederam-se várias edições, todas para queimadas públicas: na Turquia, pela defesa de um estado independente curdo por parte do autor; no Peru, por adultério nacional, isto é, por não se admitir que as pessoas que vão ao Peru possam estar a pensar noutros países. Esteve para ser traduzido para inglês, mas o tradutor teve um colapso nervoso logo na tradução do título: Peru ou Turkey, eis a questão.
  • Crónicas em Apneia (2019), crónicas 
Livro que compila as crónicas publicadas na revista Actual e que, segundo revelam as nossas fontes, o autor foi obrigado legalmente a fazê-lo sem auferir vencimento, como forma de ressarcir o jornal, pelo ataque às suas instalações por um grupo de radicais turcos.
Nenhuma das crónicas contém qualquer teor político, sendo a tónica comum as temáticas ligadas a escritores e seus vícios. Podemos aqui encontrar textos como: Hemingway Era Um Duro Mas Tomava Ulcerim Antes do Jantar; O Batom de Capote; Nabokov Tingia as Asas das Borboletas com Cores Ocres; Não Fui Eu: Escrita Directa de Fernando Pessoa. 
  • O Verdugo Não Quer Ser Porteiro (2021), teatro
Peça que esteve em cena no Teatro Nacional D. Maria II, entre 25 de Junho e 16 de Julho de 2023.
Consiste num diálogo de impropérios entre dois vizinhos, ambos mudos, que se insultam em linguagem gestual através da parede que divide as suas casas. O público é convidado a seguir a peça por um libreto, que contém os diálogos em braille.
O autor pediu a reserva das filas A e C, par e ímpar, do 1º balcão, para a FPAS (Federação Portuguesa das Associações de Surdos). Verificou-se que foram estas as filas que permitiram uma melhor compreensão para o resto do público: sempre que se riam, contagiavam a plateia e os camarotes, e parte do 2º balcão.

(continua a continuar a continuação aqui)

Prémio Taveira

Temas para o sucesso na escrita:
  1. Em Portugal: Guerra Colonial e derivados, que é como quem diz: retornados, Angola, Moçambique e Guiné;
  2. Em Espanha: Guerra Civil Espanhola;
  3. Nos Estados Unidos: ser americano;
  4. No Japão: estabelecer dicotomias entre o tradicional e o moderno vestido de seda, ou falar do exótico da Ásia - relações com gueixas, monstros, karaté kid;
  5. Na Europa: posicionamento anti-nazi, de preferência com personagens que tenham estado em Auschwitz ou nas filiais.
Possível enredo:

1936:
Tzvi Castillo encontrava-se de férias em Sevilha.
Gonzalo Queipo de Llano, chefe militar de Franco para a Andaluzia, repara em Tzvi.
Bem, repara que a cidra de Tzvi tem mais espuma que a sua.
Tzvi abandona a Bodega Olé e sente a necessidade de fugir.
1941:
Já instalado na pacata vila de Oświęcim, no sul da Polónia, cruza-se com o que parece ser um cidadão alemão.
Sem reparar que o chão da mercearia ainda se encontrava húmido, escorrega e vai de encontro à cabeça do alemão.
Ficam ambos azamboados:
Tzvi: - Peço desculpa, culpa minha.
Alemão: - Mas... mas... são dois! E iguais!
Tzvi: - Ah, mas está a ver a dobrar. Vou já chamar um médico.
Alemão: - Não é necessário. Eu sou médico.
Tzvi: - Ah, sim?  Por acaso não tenho andado bem. Dá consultas onde?
Alemão: - Em Birkenau.
Tzvi: - Tem cartão?
Alemão: - Aqui tem.
Tzvi não chegou a visitar aquele médico, de nome Mengele, pois deixou a cidade: os seus pulmões já não aguentavam o cheiro a queimado.
1960:
Muda-se para África onde o ar era mais puro.
Instala-se num chalet em Porto Amélia, onde passa os dias a consumir cerveja guineense e cacau santomense. Vive da produção de camarão tigre em viveiro e do tráfico de diamantes angolanos. Conta com a ajuda de dois pajens goeses.
Quando começam os combates, rebentam minas pessoais nas redondezas do chalet. Muitos dos combatentes aterram às peças nos viveiros. Com a nova dieta dos camarões tigres, um deles começa a crescer desmesuradamente. Baptizado de Godzila, Tzvi vende-o a um casal de japoneses que se encontrava de férias na zona.
1970:
Perante a escassez de serviços de limpeza de vísceras, Tzvi usa o dinheiro para se mudar para os Estados Unidos.
Em Nova Iorque conhece uma lituana sobrevivente de gulag, durante a vigência estalinista, por quem se apaixona e vem a casar. Adquire a nacionalidade americana numa loja da cadeia Walmart, após mostrar que estava dentro do peso médio.

Após a publicação, surge a primeira crítica no suplemento Ipsilon:
"Este é um escritor que mete tudo lá dentro."   

quarta-feira, 8 de maio de 2013

O escritor que se esqueceu de escrever III

(continuação da continuação - parte 2 aqui)

Ante a possibilidade de ser questionado acerca dos seus livros, que não escreveu e de que apenas tinha o esboço mental inicial, Bruno refugiou-se no desconforto do seu lar.
Foi em clausura que foi sabendo do crescimento do seu corpus bibliográfico, da atribuição de prémios e do volume de vendas. Eis o que não escreveu, segundo o que os jornais foram destacando:
  • A demanda em marcha-atrás (2014), romance
Livro de estreia.
Uma história que tem como pano de fundo a guerra colonial, uma vez que o protagonista Emídio Sá tem problemas identitários por apenas ter nascido em 1975 e nunca ter participado na supracitada guerra.
Contou com quatro edições em território nacional e foi traduzido para cinco línguas: castelhano, francês, suaíli, mirandês da Rua Direita e mirandês de arrabaldes.
Laureado com o Prémio LeYa, sobre o qual o júri Pepetela disse: "É um livro." Esta é uma frase sintomática e, como se sabe, altamente intelectual, desde que dita em voz alta e com sotaque crioulo.
  • Quando cheguei eram duas horas antes (2015), romance
Ao segundo livro chega a afirmação de Bruno como escritor.
Emiliano Salas, filho de republicanos espanhóis, mortos durante o cerco de Toledo em 1936, decide ser ele próprio revolucionário, sob inspiração de Guevara e do peyote. Depois de falhar a participação na revolução cubana de 1959 por falta de visto, foi combatente nos levantamentos militares da Argentina, Chile, Nicarágua e Panamá. Emiliano tinha a particularidade de chegar cedo às revoluções e aproveitava esse tempo para conhecer a gastronomia local.
Ideologicamente frustado pelo resultado das revoluções em que participou, sentia-se, pelo contrário, gastronomicamente preenchido. É então que abandona o comunisno e adere ao 'charquicanismo'.
O sabor do guisado chileno leva-o a tornar-se escritor de guias gastronómicos de países ditatoriais. O seu maior sucesso foi Adie-se a Revolução Que Estou a Fazer a Digestão.
Contou com sete edições em território nacional e uma nas Berlengas, sendo traduzido para oito línguas: castelhano, francês, surinamês, quíchua, catalão, coreano, língua dos P's e português adaptado a ciciosos.
Segundo lugar no Prémio Portugal Telecom, ficando atrás do escritor brasileiro Vasco Prazeiroso (descendente da tribo Kambeba), para o qual já havia perdido no ano anterior o Prémio José Saramago.
  • Variações em Fá Sustenido do Verbo Fornicar (2017), contos
Após dois anos sem publicar, surge o primeiro livro que contém seis contos. Destaque-se o conto que dá título ao livro, pois causou enorme polémica. Diga-se que a controvérsia apenas surgiu em 2025, quando Bruno revelou, numa das poucas saídas de casa que se lhe conhecem, o verdadeiro teor do conto. Aconteceu a meio de um fado vadio, em que informa que se as pessoas unissem todos os e's das palavras compreendidas entre as páginas 34 e 35 obteriam um desenho que revelava a silhueta do escritor Vasco Prazeiroso a ser sodomizado por um búfalo americano.
Contou com duas edições antes de 2025 e treze após essa data. Não foi traduzido para qualquer língua, apenas adoptado em forma de folhetim nas escolas básicas do Estado americano do Texas, pois o desenho citado ilustrava para os texanos aquilo que os colonos fizeram à etnia de Vasco Prazeiroso.
Recebeu a chave da cidade de El Paso, por serviços prestados ao Estado do Texas, na categoria Primeira Metáfora Compreendida e Assimilada Sem Ter Que Sacar do Revólver, numa cerimónia que culminou com oitocentas rajadas de metralhadora e apenas cinco mortos.


(continua a continuar aqui)

segunda-feira, 6 de maio de 2013

Clube Hipster Joyceniano

No dia 16 de Junho de 1904, doze amigos tiveram a felicidade de acompanhar a inspiradora aventura de Leopold Bloom.
A partir daí, reúnem-se em Dublin todos os anos, no mesmo dia, para relembrar e celebrar a elevação de uma pessoa banal a herói, que culmina em apoteose um dia banal.
Esta celebração atingiu o auge em 1910, pois conjugou Bloom e a sobrevivência à passagem do cometa Halley, facto que permitiu manter ébrios os doze amigos quase um mês inteiro.
Tudo se altera com a publicação de Ulysses, por James Joyce, em 1922. Sean, Ryan, Sean, Sean, Sean, Sean, Roisin, Erin, Ciara, Sean, Ryan e Sean não queriam acreditar no que acabavam de ler. Bem, nem todos. Sean, Ryan, Sean, Erin e Ciara ficaram apenas indignados por não perceberem o que estavam a ler. A incredulidade de Sean só chegou após o irmão Sean lhe ter explicado o que havia lido.
A questão prendia-se no tempo e no espaço: no tempo, pois o livro retratava apenas dezoito das vinte horas da epopeia de Bloom, descurando as duas horas finais que dão significado ao dia e aos dias que se sucedem; no espaço, pois Joyce como que coloca Bloom sozinho em Dublin, deixando vazio o espaço que ocuparam os doze amigos.
Pior: onde estava Joyce no 16 de Junho de 1904?
Acabava de sair de Dublin e era conhecido na altura por 'O Pirata de Zurique'. Ele não havia assistido a nada.
Os doze amigos reúnem-se para decidir o que fazer e escrevem um memorando em que acusam Joyce de ter transformado o que poderia ser o novo Novo Testamento numa nova Odisseia, completamente desfasada da realidade.
Joyce preferiu ser escritor em vez de evangelista.
O memorando não passou de uma nota de rodapé, cada vez mais ténue, com a emergência da nova celebração dedicada a um livro - Bloomsday.
Nas únicas palavras que Joyce dirigiu aos doze amigos, em forma de missiva, dizia que queria que o mundo girasse ao contrário através da sua escrita e pretendia que uma celebração religiosa se tornasse numa celebração pagã, ao contrário de todas as outras até então.
O desvario foi completo e os doze amigos deixaram o país. 
Voltamos a ouvir falar deles apenas em 27 de Março de 1997. Não de todos, pois Sean, Sean, Ryan, Sean e Ciara já haviam perecido. Os outros, com excepção de Sean, acabavam de ser noticiados como mortos. 
O mundo soube desta história pelo Larry King (CNN), numa entrevista a Sean, da qual passamos a destacar as principais passagens: 
Larry King (LK): O que sentiu quando ouviu esta notícia que acabámos de passar nesta peça?
Sean (Sean): Fico triste pela perda de amigos mas sobretudo pela sua vida em vão.
LK: Em vão, como assim?
Sean: Em vão porque acreditaram no verdadeiro, apenas escolheram o meio errado.
LK: Pode explicitar?
Sean explica a verdadeira história de Leopold Bloom.
Sean: Depois da publicação do infâme livro ainda duvidámos das nossas crenças, mas chegámos à conclusão que - por votação e consequente maioria de dois terços - estávamos correctos. Tínhamos esquecido um pequeno grande pormenor.
LK: Que é?
Sean: A passagem do cometa Halley. Todos nós sentimos que, nesse ano de 1910, a celebração foi diferente, para melhor, e que depois dessa entrou numa espécie de decadência. Como se o espírito de Bloom se afastasse de nós, se desvanecesse. E só conseguimos perceber isso em 1954.
LK: Que se passou em 54?
Sean: Todos os dublinenses viram o que se passou nas horas finais de Bloom, naquelas que o anti-bloomista Joyce se recusou tratar. Aquela luz pressagiava algo. E em 54 concluímos que Bloom seguiu com o cometa. Cabía-nos segui-lo. Mas em 1910 ainda não nos tínhamos apercebido.
LK: Foi aí que começaram a preparar-se para a passagem de Halley em 1985. Por que não seguiram nesse ano?
Sean: Acontece que a Roisin era crente em Maradona e achou que, no ano seguinte, ele iria humilhar os imperialistas dos ingleses, o que veio a acontecer. Bloom no céu, Maradona e Burruchaga na terra. Valeu o adiamento.
LK: Então, mas a próxima passagem de Halley só ocorreria em 28 de Julho de 2061. O que passou pela vossa cabeça?
Sean: Eu sei. Em 79, Sean conheceu Marshal Applewhite, que lhe garantiu que se podia chegar a Bloom não só por Halley mas também por Hale-Bopp. Ele defendia que a rede de cometas funciona como as redes de transportes, com paragens comuns. Dessa forma, podíamos adiar 1985 para 1997, que era quando passava Hale-Bopp.
LK: Então foi por isso que foram encontrados ontem?
Sean: Sim, pobres coitados. Conhecem a verdade mas apanham o cometa errado. Nunca vão conhecer Bloom.
LK: O Sean, então, deixou de acreditar. É isso?
Sean: Não, de todo. Acredito é que só pelo Halley se chega a Bloom.
LK: Mas em 2061 terá 181 anos. Correcto?
Sean: Sim, tranquilo. Ando de bicicleta diariamente, evito os fritos e tomo um sumo de mangostão todos os dias. Em 2061, lá estarei.